Terra à vista
Escassez hídrica, maior proximidade dos centros consumidores e busca por maior rentabilidade leva produtores a diversificar sistemas
27 de maio de 2019
A aquicultura mundial está em trânsito. Não apenas em busca de aspectos produtivos mais eficientes, mas de uma mudança de paradigma: produzir mais, com menor custo, em menor tempo, próximo aos mercados e com a menor quantidade de água possível.
Outro fator fundamental é a pressão social sobre os cultivos mais visados por conta de seus impactos ao entorno, como salmonicultura e a carcinicultura.
A empresa norueguesa Nordic Aquafarms anunciou recentemente planos para duas fazendas de salmão em recirculação (RAS) nos Estados Unidos: Um projeto no Estado do Maine para um volume anual de 30 mil toneladas. E também investirá em Eureka, na Califórnia, para produzir 22,6 mil toneladas de peixe por ano.
Diversas companhias especializadas em RAS também traçaram planos para se estabelecerem nos EUA. Só a Pure Salmon, apoiada por um fundo de investimento pretende chegar a 260 mil toneladas de salmão Atlântico até 2025 com unidades em mais quatro países, além dos EUA. Uma unidade na Polônia, já está produzindo 580 toneladas.
Quem desenhou esta planta é a israelense AquaMaof, referência mundial em RAS que tem planos ambiciosos também para o Brasil. “Sonhamos em elaborar um projeto de cultivo de salmão nos arredores de São Paulo”, conta Rodrigo Capó Viera, representante da empresa para a América do Sul.
Embora tenha maior disponibilidade de água que todas as demais potências aquícolas globais, o Brasil também sofre com escassez hídrica.
Períodos de estiagem cada vez mais longos, crescimento de centros urbanos, busca por maior rentabilidade, entre outras questões, fazem com que produtores consideram cada vez mais a possibilidade de investir em RAS e sistemas alternativos aos viveiros escavados e tanques-rede em reservatórios.
Por conta de restrições de doenças e necessidade de maior controle, as fases de cultivo indoor tem sido cada vez mais prolongadas em todo o mundo, inclusive no País, segundo avalia Marcelo Shei, diretor da Altamar.
Ele considera que tais sistemas ficarão mais viáveis com o aumento de restrições de produção, seja por custo de área, aumento das exigências ambientais, controle sanitário ou outras restrições aos métodos atuais.
É por isso que assistimos, nos últimos anos, a uma profusão de cursos e experimentos com intensificação, bioflocos, recirculação de água, sistemas multitróficos, nutrição complementar e outras experiências.
A Geneseas e seu projeto de juvenis de tilápia em bioflocos em Santa Fé do Sul (SP), o cultivo consorciado de camarão vannamei e tilápia e os projetos intensivos de camarão do Nordeste ao Sul são exemplos de empreendedores que assumiram investimentos e riscos inerentes às novas tecnologias.
O engenheiro de pesca Enox de Paiva Maia foi um dos pioneiros a colocar em escala um projeto alternativo aos sistemas extensivos de carcinicultura em voga em meados de 2000.
Na época, a Aquarium, de Mossoró (RN), sofreu os efeitos da Síndrome da Necrose Idiopática Muscular (NIM) como todos os vizinhos da região. Os animais não passavam de 10g, tamanho exigido pelo mercado à época.
Baseado em pesquisas que havia feito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) na década de 80, Maia resolveu transformar parte da fazenda em uma área experimental para testar o policultivo de vannamei e tilápia. A tese era a de que o peixe teria um efeito positivo sobre o convívio com a doença no sistema.
“Tudo indica que a tilápia produz uma espécie de probiótico que contém o surto da Nim. Ainda hoje é a mesma coisa com a mancha branca”, diz o empresário. A tese se mostrou acertada e o experimento cresceu: dos 5 hectares iniciais, hoje são 25 hectares.
A produção poderia crescer 20 vezes mais, caso houvesse demanda de mercado pela tilápia de água salgada. Só que o custo de produção da engorda consorciada é mais alto, o que atrapalha os planos de expansão.
O capital de giro precisa ser então de 3 a 4 vezes maior que o monocultivo, mas Maia adverte que a rentabilidade também pode triplicar. Ele relata ainda experiências promissoras com o panga: 16 toneladas do peixe e 1500 kg de camarão/hectare no mesmo viveiro.
A integração de espécies aquáticas têm múltiplas funções. A questão sanitária é uma das principais e, em um sistema hiperintensivo com bioflocos como o da Camanor, ela é ainda mais relevante.
Na Fazenda Cana Brava, em Canguaretama (RN), as densidades de camarão ultrapassam 400 camarões/m2 em alguns viveiros com temperatura controlada por estufas personalizadas.
Os investimentos são altos e os fornecedores precisam acompanhar a dinâmica constante de novos testes e implementações. “Cada dia de viveiro parado em construção custa muito para uma empresa deste porte”, indica José Carlos Di Salvo, diretor da fabricante de estufas Plantfort.
A empresa forneceu algumas unidades a pedido da Camanor para comparar com estruturas fornecidas pela Zanatta. Ambas foram personalizadas, com janelas basculantes para melhorar o controle de temperatura. Agora a Camanor investe na automatização destas janelas, que se abrem ou fecham conforme a indicação de temperatura captada por um sensor.
As tilápias são produzidas separadamente em densidades de 4 kg/m2, mas a água é a mesma que circula nos viveiros. O peixe dá estabilidade a esta água, controla o nível de bioflocos - que se tornam parte da dieta -, e os compostos nitrogenados.
O supervisor do núcleo de peixes marinhos, Ronaldo Barradas coordena diversos experimentos com peixes na fazenda, entre os quais a produção de alevinos, que já apuram sobrevivência média de 80%.
São as formas jovens do próprio camarão, no entanto, que recebem a atenção principal. “Estamos buscando cada dia mais eficiência produtiva para baixar os custos de produção e conseguir ser competitivos no mercado interno e no externo”, diz Luiz Peregrino, diretor técnico.
O início da operação do laboratório próprio de produção de pós-larvas, em Canguaretama (RN), é uma destas medidas, segundo ele. “Nosso primeiro povoamento na fazenda com nossas PLs foi em 28/02 e, em março, já ficamos totalmente independentes do mercado, produzindo 100% da nossa demanda.”
Adubo peixeiro
A aquaponia é a expressão mais popular da aquicultura multitrófica, quando ocorre o cultivo de espécies diferentes com nichos tróficos complementares, conforme explica a professora do Caunesp e Unisa Patrícia Valenti.
“Esse sistema imita o que ocorre na natureza, é muito eficiente sob o ponto de vista de espaço, água,energia e nutrientes. É o sistema mais incentivado de aquicultura na Europa atualmente.”
Sistemas multitróficos são utilizados há milhares de anos. Até hoje oferecem subsistência para populações na Índia, China e Bangladesh, como lembra a professora.
Ela acredita que a participação dos sistemas multitróficos, principalmente a aquaponia, deverá aumentar significativamente nos próximos anos.
Na aquaponia as hortaliças, frutas e legumes trabalham em prol da espécie animal. Basicamente, elas sequestram da água os compostos nitrogenados e absorvem o excesso de nutrientes, melhorando a qualidade da água.
E esta é a linha de trabalho que a AquaMaof procura imprimir a seus projetos indoor de aquaponia integrada em grande escala. “As plantas de cultivo de peixes de AquaMaof são rentáveis, mas a incorporação da aquaponia torna ainda mais atrativo o sistema, já que se alivia o fluxo de caixa”, avalia Capó.
A empresa assessorou a Rybia Farma, uma aquaponia eslovaca, a instalar o sistema de cultivo de clarias (bagre africano) em sistema de recirculação de água integrado com tomates.
Ativa desde setembro de 2015, a planta compra alevinos da Holanda e os engorda em densidades de 330 kg/ m2 até que cheguem a 1,5 kg em seis meses. “A produção anual é de 1.000 toneladas de peixes para 350 toneladas de tomate”, informa Capó.
A mesma dinâmica orienta o uso de plantas aquáticas, um caminho já testado no Brasil com bons resultados, como mostra a experiência do consultor Manuel Braz. Ele recebeu do Sebrae do Espírito Santo o desafio de melhorar a conversão alimentar de 43 produtores locais.
Braz decidiu introduzir a lemna, ou lentilha d’água, com a função de reduzir os custos de ração. A desvantagem é que a planta é muito “palatável” para alguns animais, embora também cai no gosto dos peixes.
Uma das fazendas em que Braz implantou o sistema tinha três viveiros com 1.500 m2 cada, mas muita escassez de água, o que atrapalhava a reposição e a limpeza dos dejetos. “Então usamos dois viveiros para engorda e um viveiro como um filtro”, explica.
“A água dos dois viveiros acima desciam para o terceiro, onde produzimos lemna. Quando havia problema de água, eu bombeava água do viveiro com a planta, que se nutria dos dejetos dos outros viveiros.”
O consumo de ração seguia a proporção de 1,5 tonelada para 1 tonelada de peixe. Braz passou a dar só metade da nutrição adequada para complementar com lemna. No final da engorda, o custo de produção de R$3,50/kg caiu R$ 1,00/kg.
A água adubada pelo peixe é uma grande ferramenta para redução de custos e até de pesticidas, porém é preciso escolher se o foco será nos peixes ou nos vegetais.
“Quando se dimensiona a produção de aquaponia normalmente você é um produtor de hortaliças, não peixes. Muitas vezes nestes sistemas você nem tira o peixe ou desequilibra o sistema”, avalia Rafael Barone, consultor da Partnerfish.
Há também uma questão de eficiência energética, explica. “Se fará uma ração para alimentar o peixe e ele fornecerá o resíduo para servir de adubo às plantas, é preciso produzir soja e milho. Você perde eficiência na alimentação dos peixes e transforma isso em fezes. No final das contas você está transformando soja em hortaliças.”
Sem alimento introduzido
Se alguns buscam suavizar o custo com a nutrição, outros são ainda mais radicais e removem completamente a introdução de rações e vegetais. A Primar Orgânica, sediada em Tibau do Sul (RN), cultiva camarões e ostras em viveiros escavados com densidade de 4 camarões/m3, baixa densidade, sem aeração e sem arraçoamento. “[Os animais vivem da] alimentação natural que existe no fundo do viveiro”, conta a diretora, Márcia Kafensztok.
A empresa fechou 2018 com a produção de 36 toneladas de camarão e em torno de 36 mil ostras. O volume produzido é propositalmente baixo, mas deve crescer com a adoção de um sistema bifásico: berçários intermediários para depois levar os animais à engorda.
“A produção orgânica tem baixa produtividade, se compararmos produção de kg/ha com outras fazendas de cultivo convencional. A introdução de demais organismos para cultivo, como as ostras, é um recurso para aumentar a biomassa dentro dos viveiros”, indica a empresária.
A introdução de tainha nos viveiros de ostras e macroalgas nos cultivos de camarão também dá mais equilíbrio ao sistema, que funciona de forma muito parecida ao que ocorre no estuário.
A ausência da aplicação de produtos químicos, pesticidas, transgênicos, antibióticos e hormônios credencia a produção como orgânica, entretanto o mercado ainda não valoriza esta condição.
“Nas vendas, a agregação de valor pelo produto ser orgânico não acontece. A Primar produz de forma orgânica, mas o processamento não está certificado como orgânico”, disse.
Desde o ano passado, a empresa processa parte da produção na Costa Azul Camarões, que tem registro no Serviço de Inspeção Federal (SIF). O selo nas embalagens de 1kg ajuda a vender a outros Estados, embora não como camarão orgânico.
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